O ato de vencer é unanimemente visto como o melhor que pode acontecer a qualquer pessoa que esteja envolvida numa atividade desportiva, mas a verdade é que há diferentes formas de ganhar e vitórias com um sabor mais especial do que outras. Duvida, caro leitor? Tente colocar-se então no seguinte cenário: imagine que vence uma das mais importantes provas da sua modalidade favorita, sendo que, numa outra categoria da competição, o seu irmão conquista a medalha de prata. Isto, só por si, já o deixava com um sorriso na cara, certo? Adicione agora à equação o facto de o seu pai ser tanto o seu treinador como o do seu irmão. Está montado o cenário perfeito? Pois bem, foi precisamente isto que aconteceu a André Santos, juntamente com o irmão Tiago e o pai Paulo, no Campeonato da Europa de kickboxing da WAKO, competição que decorreu em Antalya, na Turquia, durante a semana passada.
O ouro conquistado em Low Kick -67 kg reflete a superioridade de André em relação à concorrência, mas, ainda assim, o jovem não quis deixar qualquer margem para dúvida e venceu mesmo os quatro combates que disputou pela margem máxima de 3-0. "Nem nos meus sonhos imaginava que o campeonato pudesse correr desta forma. O 3-0 é certo relativo, mas, felizmente, consegui sempre ter uma boa margem. Foi ótimo porque lutei contra um turco na Turquia e fui capaz de dar aquele extra para não haver dúvidas em relação ao resultado. Esse foi um o meu primeiro grande desafio, fazer a diferença para garantir que passava a eliminatória. Uma medalha de ouro tem sempre um sabor especial, mas tendo em conta que não vinha uma para Portugal há tanto tempo [14 anos], é ainda melhor. Sei o quão difícil é conquistar medalhas na WAKO, ainda para mais numa categoria tão competitiva como a minha. Esta medalha sempre foi o meu objetivo desde que fiz a primeira competição em juniores", começa por contar André ao nosso jornal, numa ideia partilhada pelo irmão mais novo, que competiu em K1 -67 kg: "Faço um balanço positivo desta prova, conquistar uma medalha de prata num campeonato destes não é fácil. Estivemos perto de conseguir um campeonato perfeito no que à família Santos diz respeito, mas não foi desta. No entanto, vamos continuar a trabalhar para conseguirmos o ouro não uma vez, mas o máximo possível".
A vibrar a partir do canto do ringue esteve sempre o pai e treinador Paulo Santos, que, apesar de tudo, considera que a palavra ‘tranquilidade’ foi o seu lema ao longo da semana na Turquia. "É uma sensação única e é algo que se calhar até supera as nossas expectativas porque aqui estão os melhores dos melhores. Quando decidimos participar neste campeonato viemos com uma vontade enorme de conquistar medalhas. Podia ser com um, com os dois e até podíamos ter trazido dois ouros, como esteve perto de acontecer. Acompanho-os há muitos anos e este foi, sem dúvida, o campeonato mais tranquilo. Isto é fruto da preparação feita ao longo dos anos, tanto da minha parte como da deles. Já têm uma maturidade muito grande, já nem querem saber contra quem vão competir. Em momento algum me senti inseguro em relação à prestação deles", defende o progenitor e técnico dos jovens no Sporting.
Linha ténue a separar o pai do treinador
"Sempre lhes incuti muita disciplina e sei que não lhes dei uma infância igual à que as crianças normalmente têm". A frase é de Paulo Santos e reflete na perfeição a dificuldade que, de forma natural, acaba por existir na separação da relação treinador/atleta da de pai/filho. Natural de Anadia, Paulo Santos, atualmente com 52 anos, abriu, há mais de duas décadas, um ginásio na sua cidade, sendo que daí até à iniciação de André e Tiago no kickboxing foi um ápice. "Eles começaram a treinar com 4 anos de idade e nunca lhes permiti que faltassem a um treino. A partir de uma certa altura não foi preciso incutir-lhes mais nada porque eles próprios ganharam essa consciência. Agora até tenho de lhes dizer para abrandarem a intensidade dos treinos. Isso é que faz com que estejam neste patamar", continua Paulo, que recorda ainda um passado nem sempre fácil: "Chegávamos a estar 4/5 horas por dia a treinar e as coisas ficavam complicadas. O stress era muito, às vezes passavam fome para perder peso… isso acaba por beliscar a nossa relação de pai para filho. Ainda assim, há uma coisa que tenho bem presente: quando estou no canto do ringue eles não são meus filhos. Se assim não fosse, não conseguia estar ali".
Mesmo assim, tanto Tiago (atualmente com 22 anos) como André (25 anos) reconhecem a importância do pai naquilo que tem sido as respetivas carreiras. "Estamos juntos em casa, no treino, à refeição… Para além disso, mesmo sendo uma excelente pessoa, o meu pai não tem um feitio fácil. No entanto, as coisas estão cada vez melhores e sabemos que este é um processo que exige calma. O meu pai incentivou-nos e sei que o fez para o nosso bem, mesmo que na altura não pudesse os meus amigos faziam, como sair à noite ou comer o que me apetecer. Agora olho para trás e percebo que rendeu frutos", sublinha Tiago, que vinca ainda a importância de ele e o irmão serem bons exemplos para os colegas da comitiva portuguesa porque são atletas já com uma experiência superior.
A exigência, percebe-se, é máxima, mas acabou por moldar os dois jovens e a forma como encaram a vida em geral. "A partir do momento em que um atleta quer atingir um patamar elevado no seu desporto não há como termos uma vida normal e vivermos como as outras crianças. O nosso pai não nos tirou nada, nós é que percebemos cedo que, para atingirmos o patamar que queríamos, tínhamos de abdicar de muita coisa. Sabíamos que as coisas não iam acontecer no imediato, mas estão a acontecer agora. Se o patamar é realmente elevado, toda a gente trabalha para ser o melhor. Temos de pensar o que queremos realmente para a nossa vida. Se quisermos ser mais um, trabalhas como mais um. Se quisermos fazer a diferença, temos de fazer a diferença em termos de trabalho, fazer coisas que os outros não fazem e acabamos por chegar onde os outros não chegaram", realça André.
Apesar de o trajeto dos dois jovens ter rendido imensos frutos até aqui (Tiago conta, entre outros, com o ouro no Campeonato do Mundo de juniores da WAKO, com o título intercontinental da WAKO e foi o primeiro atleta luso a participar nos World Games; André foi, entre outras conquistas, campeão do Mundo e da Europa da WAKO Pro), o pai Paulo revela que está a adotar uma estratégia diferente com Miguel, o mais novo dos filhos que conta atualmente com 14 anos: ". Ele tem os meus genes, já o testei algumas vezes e ele responde bem. No entanto, ao contrário do que aconteceu com o Tiago e o André, já lhe dou mais liberdade. Ele falha um ou outro treino para ver um jogo de futebol, para estar com os amigos e para passar o fim de semana fora. O André aos 15 anos foi para Bratislava participar num Campeonato do Mundo em ringue, o Miguel está prestes a fazer 15 e só tem dois ou três combates no tatami. O Miguel tem de ter um momento dele e, quando for a altura certa, vai estar lá como os irmãos. A minha idade é outra e estou a tentar não cometer os mesmos erros que cometi com o André e o Tiago".
Meta é ser cada vez melhor
Aos 25 e 22 anos, André Santos e Tiago Santos ainda têm um longo futuro pela frente no que à modalidade diz respeito, num cenário que faz com que a ambição de ambos para os próximos anos seja muito grande. De resto, foi com o objetivo de continuar a evoluir que André começou a trabalhar durante períodos relativamente longos na cidade holandesa de Utrecht a partir de abril deste ano. "Estava há muitos anos confortável em Portugal e sabia que tinha de mudar algo na minha vida. Embora não estivesse, sentia-me estagnado e precisava de conhecer pessoas novas e aprender coisas novas. Nunca tinha posto a possibilidade de sair de Portugal, mas precisava de desafios novos. Os outros fazem isto também e percebi que não podia estar sempre na minha zona de conforto. Tenho sempre a minha equipa, o meu treinador e o meu irmão, mas estou a crescer como atleta e como pessoa. Sei que vou atingir um patamar mais alto do que aquele em que estou atualmente", projeto o mais velho dos atletas Santos.
Mesmo tendo o irmão como referência, Tiago diz que, pelo menos para já, não pensa em trabalhar no estrangeiro, ainda que tenha objetivos bem definidas para o seu futuro: "Podem esperar o mesmo empenho e dedicação de sempre, quero ganhar tudo o que houver para ganhar. Não o prometo fazer, mas prometo fazer tudo para que aconteça. Tenho de ir buscar o ouro em Campeonatos da Europa, Campeonatos do Mundo, Taças do Mundo, tudo".