O BCE, as taxas de juro e as causas monetárias da inflação

É duvidoso que os recentes aumentos das taxas de juro do BCE sejam suficientes para causar a pretendida contracção da procura de novo crédito bancário.

Os baixos níveis de crescimento do PIB e de inflação que a zona euro atravessou desde o início da década passada até um momento bem recente levaram o BCE a manter a taxa de juro das suas operações principais de refinanciamento em 0%, e a taxa de juro da facilidade permanente de depósito em valores negativos, variando entre -0,20% e -0,50%, durante a maior parte do período entre Setembro de 2014 e meados de 2022. Esta política começou a ser invertida muito recentemente, na sequência da subida abrupta da taxa de inflação que, em menos de um ano, passou de 2% para 10%. Esta alteração substancial do contexto inflacionista levou o Banco Central Europeu a fazer, desde 27 de Julho deste ano, três aumentos da taxa de juro das suas operações principais de refinanciamento, que a levaram do valor de 0,00% para 2%. Conjuntamente com estas modificações, a facilidade permanente de depósito passou de -0,50% para 1,50%.

O uso das taxas de juro como principal instrumento de política monetária tem o objectivo de conduzir a taxa de inflação para o valor alvo escolhido pelo banco central, o qual, na zona euro, é 2%. Esta modalidade de política monetária, designada por inflation targeting, tem na sua base a chamada regra de Taylor, proposta em 1995 pelo economista John Taylor, da Universidade de Stanford, cujas determinantes fundamentais são a taxa de juro natural de longo prazo (taxa de juro capaz de assegurar o pleno emprego sem aumentar a inflação), o desvio da taxa de inflação efectiva relativamente à taxa de inflação alvo, e o desvio do PIB efectivo relativamente ao PIB potencial. A taxa de juro natural e o PIB potencial estão sujeitos a erro de estimação e a eventual desactualização, o que constitui uma das limitações deste modelo. Outra das suas dificuldades reside na impossibilidade de o banco central fazer descer a sua taxa de refinanciamento abaixo do limite de 0%, o que pode inviabilizar o objectivo de fazer subir a taxa de inflação quando está abaixo do valor alvo, situação que ocorreu na zona euro durante grande parte da segunda metade da última década.

Fixar valores negativos apenas para a taxa de juro da facilidade permanente de depósito aberta aos outros bancos, como fez o BCE, com o objectivo de os incentivar a aumentarem o crédito à economia, revelou-se insuficiente para fazer subir a taxa de inflação e a taxa de crescimento do PIB quando estas eram muito baixas, como demonstram os resultados observados na zona euro. O valor negativo dessa taxa de juro arrastou também para valores negativos as taxas de juro dos mercados interbancários, que agora regressam a valores positivos, em resultado da recente subida das taxas de juro do BCE.

As taxas de juro muito baixas, acompanhadas do programa de compra de dívida pública pelo BCE e bancos centrais nacionais, serviram para que os governos da zona euro vissem baixar as taxas de juro das novas emissões de dívida, o que foi particularmente favorável para aqueles em que o peso desta no PIB é elevado. Essas taxas de juro baixas não tiveram, no entanto, um efeito significativo sobre o PIB real da zona euro, cujas taxas de crescimento de 2014 a 2019 se mantiveram em valores positivos mas inferiores a 2%, com a excepção de 2017, ano em que o valor foi ligeiramente superior. Em 2020, devido à pandemia, a variação do PIB real da zona euro foi de -6,4%, seguida duma recuperação significativa em 2021, com a taxa de crescimento de 5,4%.

Esse crescimento substancial do PIB, conjuntamente com o aumento significativo dos preços da energia, agravado pelas consequências da guerra da Ucrânia, tem servido para explicar o grande aumento de preços entretanto ocorrido, com a taxa de inflação a passar de -0,3% em Dezembro de 2021 para 10,7% em Outubro de 2022. De acordo com o modelo de inflation targeting, a medida de política monetária a desencadear para contrariar este novo contexto inflacionista é o aumento das taxas de juro de intervenção.

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A presidente do BCE, Christine Lagarde REUTERS/WOLFGANG RATTAY

No entanto, se compararmos a subida levada a cabo pelo BCE, de 0% para 2%, com a subida da inflação atrás referida, é fácil compreender que este aumento é manifestamente insuficiente para atingir os seus objectivos, dado que as taxas de juro, em termos reais, são agora bastante mais baixas do que anteriormente. É, por conseguinte, duvidoso que os recentes aumentos das taxas de juro do BCE sejam suficientes para causar a pretendida contracção da procura de novo crédito bancário.

Ao mesmo tempo, esta subida das taxas de juro está a ser prejudicial para muitos dos actuais devedores da banca com contratos a taxa de juro indexada, de que são exemplo os que têm crédito à habitação e vêem o poder de compra dos seus rendimentos prejudicado pela política de repressão salarial com que governos da zona euro, nomeadamente o Governo português, dão a mão aos bancos centrais nesta tentativa de contrariar a subida da taxa de inflação. Poderia o BCE ter feito algo diferente? Em termos de política de taxas de juro talvez não, e percebe-se que agiu com prudência, ao fazer subidas das taxas de juro bastante inferiores à subida da taxa de inflação.

Este comportamento cauteloso dos bancos centrais pode explicar-se em boa medida pelo facto de a inflation targeting ser um procedimento de política monetária quem tem sido usado em épocas de inflação baixa, mas que se revela insuficiente em períodos de inflação elevada. A maior parte da investigação desenvolvida durante a época inflacionista que foi dos anos 60 até ao início dos anos 90 do século passado demonstrou que qualquer processo inflacionista prolongado ocorre sempre que, durante um período relativamente longo, a taxa de crescimento da quantidade de moeda na economia tiver sido superior à taxa de crescimento do produto.

Acontece que, negligenciando esta experiência de períodos inflacionistas anteriores, o BCE, ao centrar a sua política na inflação alvo, não fixou objectivos para a taxa de crescimento dos agregados monetários. A prova disso é que desde 2015 as taxas de variação de todos os agregados monetários da zona euro têm sido muito superiores à taxa de crescimento do PIB em termos reais. Enquanto esta raramente ultrapassou 2% de crescimento anual, como atrás foi referido, a taxa média de crescimento anual do agregado M1, composto por notas em circulação mais depósitos à ordem, foi de 13,17% em 2015, diminuiu até atingir o valor de 7,17% em 2018, voltando depois a subir até atingir 12% em 2020, tendo depois descido até ao valor de 7,89% em 2022. Durante o mesmo período, o agregado M2, que engloba M1 mais os depósitos a prazo, e o agregado M3, que engloba M2 mais outros passivos dos bancos com prazo inferior a dois anos, seguiram trajectórias mais ou menos paralelas à de M1, com taxas de variação inferiores às deste, mas bastante superiores à taxa de crescimento do PIB.

Merece igualmente atenção a evolução da Base Monetária, a qual, sendo a moeda emitida pelo banco central, reflecte directamente o efeito dos programas de compra de activos por parte deste. O que se destaca na evolução da Base Monetária é que a sua taxa de crescimento anual média foi quase sempre muito mais elevada do que a dos agregados monetários, tendo atingido os valores de 38,62% em 2016 e 45,43% em 2021. Se a evolução dos agregados monetários evidencia os riscos inflacionistas que se foram criando na zona euro ao longo da última década, a evolução da Base Monetária, traduzindo-se no aumento significativo da liquidez bancária, é indiciadora das dificuldades com que o BCE se pode deparar ao tentar combater a inflação elevada apenas com recurso a subidas das taxas de juro.

A Comissão Europeia prevê uma descida acentuada da taxa de crescimento do PIB para 0,3% em 2023, seguida da retoma para 1,5% em 2024. Prevê também que estas variações do PIB sejam acompanhadas pela descida da taxa de inflação para 6% em 2023 e 2,6% em 2024, parecendo esta última excessivamente optimista, pela descida que representa, e dada a maior dificuldade em fazer previsões a dois anos de distância.

Se estas previsões não se confirmarem, o BCE dificilmente poderá continuar a contar com o apoio da repressão dos salários e das pensões de reforma por parte dos governos, cuja repetição se tornaria social e politicamente inaceitável, para além de ter efeitos económicos adversos. Nesse contexto, o BCE e os bancos centrais nacionais da zona euro terão de colocar em agenda outras medidas, entre as quais estão as operações de absorção de liquidez que têm o efeito complementar de fazerem subir as taxas de juro, mas que vão em sentido contrário a tudo o que tem caracterizado as suas intervenções no mercado ao longo dos últimos anos. Essas operações de absorção de liquidez serão necessárias para que o BCE consiga refrear o crescimento dos agregados monetários, o que constitui um passo inevitável para combater a inflação, se esta tender a persistir.

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