Até que o papel nos separe

Numa altura em que se fala tanto da falta de médicos de família no SNS, é importante frisar que uma das razões porque é difícil atrair e reter profissionais é a excessiva burocracia.

Agora que se perspectiva uma nova fase no SNS com a entrada em funções da respectiva Direcção Executiva, é incontornável o apelo a que se olhe seriamente para a burocracia e constrangimentos logísticos que corroem os serviços de saúde diariamente.

Devemos continuar a colocar as tecnologias de informação de forma mais incisiva ao serviço dos profissionais, permitindo-lhes poupar tempo através de uma adequada integração dos dados clínicos dos doentes. Nesses mesmos programas informáticos, devem ser corrigidos os sucessivos erros e eliminadas as tarefas redundantes e desnecessárias, indutoras apenas do desespero e da depauperação da paciência de profissionais e utentes.

Temos de discutir se é um razoável investimento do tempo médico manter as diversas tarefas burocráticas, muitas delas dependentes do preenchimento de um papel, credencial ou formulário. Exemplos como relatórios clínicos para instituições que têm acesso à mesma informação via sistema informático ou credenciais de transporte recorrentes são comuns e especialmente dolosos em doentes tão vulneráveis como os oncológicos. Por vezes, aliada à procura de papel ou toner para a impressora do gabinete, se essa funcionar, e às constantes quebras e falhas dos sistemas informáticos usados durante a consulta.

Todos os dias os médicos de família têm de passar inúmeras horas a emitir atestados médicos, a escrever relatórios para juntas médicas, complementos por dependência e todo o tipo de requerimentos da segurança social, declarações de regresso à escola, renovação de receituário, só para referir alguns exemplos, enquanto milhares de pessoas com quadros de doença aguda ou doença crónica agudizada desesperam por uma vaga para consulta no próprio dia, acabando, em muitos casos, por recorrer aos serviços de urgência dos hospitais, por falta de alternativas.

Numa altura em que se fala tanto da falta de médicos de família no SNS, sobretudo na região de Lisboa e Vale do Tejo, é importante frisar que uma das razões porque é difícil atrair e reter profissionais é a excessiva burocracia. Muitos eventos de formação para médicos de família hoje em dia até contemplam workshops sobre burocracias, tal é o seu peso na sua carga de trabalho.

Nas funções regulatórias destinadas aos médicos, um dos maiores exemplos é mesmo o das cartas de condução. Tardam em ser implementadas as soluções já legisladas dos Centros de Avaliação Médica e Psicológica (CAMP), como já acontece em Espanha, não só para as cartas de condução como para as licenças de porte de arma. A pressão sobre os médicos de família é, aliás, contranatura, porque o profissional se vê na posição de prejuízo de relação médico-doente caso veja razão para a não emissão de parecer favorável.

Mesmo em consultas presenciais, muito do tempo de consulta ainda é consumido hoje em dia a registar manualmente os resultados dos exames trazidos pelos utentes no processo clínico, tempo este que penaliza contacto visual, exame objectivo ou simplesmente a demonstração de empatia.

Em época de gripe sazonal, continuamos a entupir serviços com a procura de um certificado de incapacidade temporária (vulgo “baixa”), tapando horários de atendimento de situações que merecem maior atenção clínica. Noutros países, já se adoptaram hábitos de simplificação de procedimentos perante este tipo de situações, com benefícios para a população como um todo.

Relativamente às Juntas Médicas de Avaliação de Incapacidade, que foram “enfiadas” nas Unidades de Saúde Pública durante anos, sem qualquer enquadramento racional nem preparação específica na avaliação do dano, os CAMP poderiam ser uma solução sistemática. Claro que, a montante de alguns destes problemas, encontra-se também um conflito perene entre Finanças, Segurança Social e Saúde em torno do modelo de atribuição de benefícios aos cidadãos. A clarificação de responsabilidades e planeamento estratégico integrado entre ministérios é uma necessidade incontornável, sobretudo no reconhecimento e valorização da incapacidade.

Libertar os médicos de inúmeras tarefas burocráticas, ou pelo menos simplificá-las e automatizá-las é também melhorar a atracção e retenção de médicos no SNS, para que se possam focar nos aspectos puramente clínicos da profissão em vez de contribuir para a desmotivação, burnout e abandono da profissão. Em última análise, pretende-se uma melhoria de acesso e da resposta aos utentes. Para isso, é necessário um divórcio entre os médicos e o papel.

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