Vamos a jogo?

Se tivéssemos verdadeiro horror à hipocrisia, não seria a própria Federação Portuguesa de Futebol a boicotar o Mundial, impedindo a selecção de lá ir?

Cresce o número dos que denunciam as atrocidades laborais cometidas no Qatar, enquanto a FIFA assobiava para o lado. Será, não tenhamos dúvidas, um torneio que terá em seu redor uma aura de fatalidade e tragédia. Poderá ser útil ter isto em conta, se se quiser ser honesto, com ou sem penitência.

Tal como a luta de classes (e a sua consciência) no interior de uma nação é desencadeada para corrigir as desigualdades, o jornalismo de investigação por atentados à dignidade corrigirá, havendo vontade, as actuais injustiças. Mas as vontades raramente se sobrepõem aos interesses.

Não será difícil encontrar analogias noutros campeonatos. Dizia Alexandre O’ Neill, ao tempo da ditadura do general Videla na Argentina, em 1978, por alturas em que se chutava a bola nos relvados e se torturavam opositores do regime, ali perto, num centro de tortura da Marinha daquele país: “Em Buenos Aires, no River Plate/ a seis campos de futebol (medidas máximas)/ do Centro onde, entre outros primores de jogo/ se chutavam testículos, mamas e cabeças/ a Taça do Mundo ferverá nas mãos de quem a ganhar/ de quem a empunhar, de quem por ela beber/ A MERDA DE TER LÁ IDO” (As horas já de números vestidas, 1981).

O Bloco de Esquerda defende que o Governo e o Presidente da República não se façam representar no Mundial; a Amnistia Internacional exige à FIFA e ao governo do Qatar indemnizações para os trabalhadores migrantes, pelos abusos de que foram vítimas, na preparação das infra-estruturas do Mundial; o Presidente Marcelo afirma que o “Qatar não respeita os direitos humanos. Mas, enfim, esqueçamos isto”. De certa forma, este padrão parece ser uma admissão do uso metafórico da “pirataria” de Estado ou do eufemismo.

Uma coisa é gostarmos tanto de futebol – desde o tempo em que nos iam às canelas e fazíamos cuecadas – que mais vale dizer “eu não sou de cá, vim ver a bola”. Outra é admitirmos a ignomínia, passarmos de raspão a mão pela consciência, exibirmos a consciência cívica e a tocha dos direitos humanos, e enquadrarmos estes constrangimentos nos excepcionais “valores do Golfo Pérsico”.

Se tivéssemos verdadeiro horror à hipocrisia – com o mesmo ímpeto com que o mundo interditou a Rússia das mais variadas competições desportivas –, não seria a própria Federação Portuguesa de Futebol a boicotar o Mundial, impedindo a selecção da merda de lá ir?

As coisas são o que são. E o mundo do ludopédio não poderia estar mais tranquilo.

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